A institucionalidade da cultura e as mudanças socioculturais 

Na solenidade de posse como titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, Canclini proferiu a conferência “Las Instituciones fuera de Lugar”, na qual explicitou as motivações e objetivos do projeto. Segundo ele, o título da conferência foi um reconhecimento à importância do ensaio de Roberto Schwartz “As Ideias fora do Lugar” (1977), “que me ajudou a repensar as contradições de um modernismo sem modernização na América Latina quando escrevi meu livro ‘Culturas Híbridas’, no final dos anos 80”.

Ele recordou que seus vínculos com o Brasil e a cultura brasileira remontam aos anos 70, quando vinha ao país para acompanhar as vanguardas artísticas dissociadas das instituições e conhecer os comportamentos do público como consumidor de arte.

Em 1983, ministrou um curso de pós-graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP sobre necessidades populares e consumo cultural. Ele data dessa época o início de sua percepção de que as políticas culturais podem ser estudadas a partir da recepção do público.

Novo panorama

Desde então, as coisas mudaram muito, com desintegração, precariedade do trabalho e do consumo, o público de eventos institucionais transformando-se em clientes da indústria audiovisual e de corporações eletrônicas e o desmantelamento agressivo das instituições, não apenas com cortes orçamentários, apontou o antropólogo. “Também se enfraqueceram organismos de governança mundial e regional e os acordos de convivência internacional.”

E mesmo antes do quadro atual resultante da pandemia, houve “acentuação das desigualdades, desamparo dos mais necessitados e subestimação política e social do saber científico por muitos governos”.

Por outro lado, a pandemia ativou movimentos locais, nacionais e transnacionais de solidariedade e o uso de recursos digitais para tentar reconstruir o público, ressalvou Canclini.

Segundo ele, a decepção em trabalhar para a transformação das políticas culturais o levou a estudar as vanguardas e as práticas dos consumidores. Isso se deu, disse, porque apostou que as inovações artísticas e o conhecimento dos públicos podiam desburocratizar essas políticas e conectá-las com a criatividade social nos processos de redemocratização pós-ditatorial de vários países.

Redefinição

Ele considera que o termo instituição cultural não se aplica hoje apenas a museus, bibliotecas, livrarias, editoras, cinemas, teatros e salas de concerto, englobando também aplicativos como o WhatsApp e serviços como o download de filmes e e-books.

Em sua opinião, há falta de textos que redefinam o que são instituições. Pesquisando em dicionários de sociologia, antropologia da cultura e comunicação, disse que só em dois encontrou verbetes curtos sobre instituições, escritos há mais de 20 anos, quando a internet começava a se expandir e não havia redes sociais, nem aplicativos. Esses verbetes apresentam como “características principais das instituições o duradouro, a regularidade e a reprodução da sociedade”.

A partir dessas características, fica difícil atribuir o caráter de instituições a movimentos sociais que parecem ser efêmeros e a dispositivos eletrônicos ou digitais que desaparecem, disse.  “O mundo digital fomenta, em vez da continuidade, a inovação e a substituição de comportamentos. A desmaterialização da cultura tende a fazer com que as plataformas ou aplicativos se distanciem da lógica reprodutiva das instituições.”

Segundo ele, é possível fazer uma sociologia ou antropologia das instituições digitais, uma vez que elas socializam tanto quanto a família, a escola, a universidade e a fábrica. “Mas também dessocializam o que foi articulado pelas instituições clássicas ou geram disputas nos modos de interpactuar entre distingas gerações, níveis educativos e pela maneira como se inserem nas formas comunitárias, urbanas e nacionais que continuam a nos conter.”

Desilusão

Para ele, a fascinação criada pela internet como uma rede aberta de iterações e as ilusões que engendrou como veículo de democratização diluíram-se – “mas não desapareceram” – quando na segunda década do século 21 “Google, Facebook, Amazon, Apple, Huawei e algumas outras corporações nos fazem trabalhar grátis e comercializam nossos dados, gostos e opiniões políticas”.

“Nos estudos sobre as megainstituições digitais e sobre a capacidade ou debilidade políticas dos movimentos sociais e as rebeliões dos espionados, estamos apenas compreendendo qual é a nova configuração dos poderes mundiais e nacionais.” Para ele, quando as pessoas são tradas como clientes, consumidores, segurados, usuários, ainda é difícil entender o “reordenamento da perda de sentido realizado pelas instituições digitais e o esquecimento de nossa condição de cidadãos”.

Estudo comparativo

De acordo com o antropólogo, o objetivo de seu projeto na cátedra é estudar as instituições públicas e privadas – “algumas inovadoras, como os Pontos de Cultura brasileiros” –, comparando seu desempenho diverso no Brasil, na Argentina e no México, e outras experiências de institucionalização abertas à articulação com as mudanças socioculturais.

O foco do projeto são “instituições e movimentos socioculturais que buscam construir alternativas a Estados falidos e comportamentos induzidos por dispositivos e corporações digitais”.

Canclini lembrou que experiências como o vale cultura foram adotadas no Brasil, Argentina e México e que em vários países discutiu-se se o governo deve subsidiar espetáculos ou os espectadores, apoiar apenas instituições públicas ou também gigantes da internet, como Google e Netflix.

“O que ocorre para que algo que julgávamos tão valioso necessite de respiração artificial? Como diferenciar instituições e empresas? Deve-se apoiar atividades e estilos consagrados ou as ofertas que atraem maior público?”

As perguntas são muitas, mas não se dirigem apenas as interações entre Estado, empresas e sociedade, mas também à forma como os cientistas sociais questionam as mudanças, segundo o novo titular da cátedra.

Nesse sentido, considera que não se sustenta a ideia que agora se assistiriam menos filmes por causa do fechamento de salas de exibição desde o surgimento do videocassete nos anos 80, nem pelo fechamento das locadoras de DVD, nem pelo download de filmes.  “Mudou o modelo de negócio e o lugar das salas em meio à convergência tecnológica e os hábitos mutantes dos consumidores.”

Ele citou que o número de espectadores de cinema caiu pela metade no México entre 1976 e 1994, mas que nos últimos 25 anos as multissalas quintuplicaram a assistência e o país agora ocupa o quarto lugar no mundo em infraestrutura e espectadores.

Em relação à leitura, comentou que levantamentos feitos sobre os leitores no Brasil e no México em 2011 indicaram que se lê menos do que antes, “mas as pesquisas tinham defeitos, concentraram-se na leitura de livros e em comportamentos associados a eles, com poucos dados sobre  a presença em bibliotecas e a leitura de jornais e revistas e negligenciando as práticas de leitura e escrita na internet”.  Para ele, a pergunta de partida de uma pesquisa sobre leitores não deve ser quanto se lê, mas quando e como se lê.

Canclini destacou que a pandemia provocou um aumento na leitura de jornais online, e-mails e livros em certas zonas e níveis educativos, a televisão recuperou audiência, os serviços de telefonia fixa, declinantes desde os anos 90, aumentaram 40% nas grandes cidades do México e em outros países em função do teletrabalho, da educação à distância e da troca de informações e produtos com os vizinhos.

Desinstitucionalização

Outra preocupação da pesquisa de analisar os processos de desinstitucionalização da cultura, como a extinção de ministérios e outras instituições públicas dedicadas a geri-la, a asfixia orçamentária, os movimentos de artistas e gestores em defesa das instituições e a busca de outras alternativas em países latino-americanos, afirmou.

Canclini elegeu os museus como tema de interesse, com a intenção de examinar como algumas dessas instituições tentam renovar-se diante da era digital. Segundo ele, especialmente neste ano de pandemia, “depois de fechamentos prolongados a aberturas temerosas, alguns estão tentando ir além de vídeos interativos e guias para celulares”. A ideia é utilizar big data para conhecer seus visitantes e não visitantes, calcular tempos de atenção e outros parâmetros, “como fazem emissoras, empresas editoriais e quem mais guia sua ‘política cultural’ a partir de medições de hábitos e gostos”.

Ele alertou que essas medições podem equivocar-se por não levar em conta diferenças qualitativas. “Interessa conhecer dados mais refinados para revisar se os museus e outras instituições culturais podem servir para formar cidadãos que compreendam a interculturalidade, os direitos e deveres da convivência e as vias mais sutis para experimentar prazer”.

A questão central é se “os museus podem, além de ser guardiões da memória e promotores da experimentação, ajudar-nos a reconfigurar o sentido de viver juntos, das relações não mediadas nem construídas adequadamente pelas instituições, como as que gerem as migrações e a solidariedade”.

 

 

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