Apresentação

Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência

Por Liliana Sousa e Silva, coordenadora executiva, e Martin Grossmann, coordenador acadêmico da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência

O antropólogo Néstor García Canclini, um dos cientistas sociais mais influentes da América Latina, assumiu a titularidade da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência em 1º de setembro de 2020, quando deu início à pesquisa A institucionalidade da cultura e as mudanças socioculturais juntamente com dois pesquisadores de pós-doutorado selecionados para acompanhá-lo nesse período. Os resultados da investigação podem ser consultados diretamente aqui, mas também no site do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP).

O site “Diálogos com Canclini no Brasil” foi criado em homenagem a esse grande antropólogo e pensador, que é o primeiro estrangeiro a ocupar a Cátedra, inaugurando sua dimensão latino-americana. Nesse âmbito geopolítico, Canclini é um caso singular no campo da cultura, uma vez que conhece a fundo a realidade dos diferentes países e regiões que conformam esse território, produzindo assim obras magistrais e de referência, dentre elas a mais conhecida Culturas Híbridas (1997). Além dos resultados da pesquisa conduzida pelo catedrático, estão disponibilizados neste sítio entrevistas e textos selecionados, bem como seu perfil detalhado, com atividades docentes, produção bibliográfica, artigos, premiações e títulos, participações em congressos, simpósios e sociedades científicas, além de uma linha do tempo que destaca sua relação com o Brasil, com as várias visitas realizadas ao longo de mais de cinco décadas, quando pôde divulgar suas reflexões e também criar laços afetivos.

Estes conteúdos evidenciam sua trajetória e pensamento singulares, alicerçados em investigações que articulam reflexões teóricas com pesquisas empíricas, e também em análises da estrutura social aliadas a um olhar para questões do campo do imaginário. Para além de domínios específicos de conhecimento, Canclini agrega uma diversidade de perspectivas, pensamentos e saberes que representam seu interesse em estudar fenômenos emergentes, como os atuais processos de descidadanização e desinstitucionalização da cultura, associados ou não às significativas transformações provocadas pelas novas tecnologias e, mais recentemente, sobre os efeitos da pandemia, em particular na América Latina.

Esperamos que este site dê visibilidade e facilite o acesso a essa intensa, profunda, inovadora e fundamental produção, que está sempre à frente de seu tempo. Uma ótima leitura!

Maria Arminda do Nascimento Arruda

NESTOR GARCIA CANCLINI. O COSMOPOLITA DE RAIZ
Por Maria Arminda do Nascimento Arruda

Em entrevista concedida à Revista Pesquisa FAPESP, por ocasião da sua permanência à frente da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, no Instituto de Estudos Avançados – IEA – da Universidade de São Paulo, Néstor García Canclini, antropólogo, cientista social e crítico da cultura, referiu-se ao ensaio As ideias fora do lugar, de Roberto Schwartz, como sendo uma reflexão precursora a respeito do caráter desarranjado do processo de modernização cultural e intelectual no Brasil e que foi uma fonte de inspiração para os seus trabalhos:

“Uma linha central dos meus argumentos é que, na América Latina, a modernidade não substitui as tradições, mas elas coexistem. Precisamos entender como se dá essa convivência na estrutura social e nos próprios sujeitos. A tensão entre realidade social e leis que pretendem ser modernas também ocorre em outros países latino-americanos. Cada um gerenciou essa contradição de forma diferente. Em nações com ampla população indígena, como Bolívia, Peru, Guatemala e, de certo modo, México, os hábitos e os costumes tradicionais de comunidades indígenas foram incorporados nas legislações e coexistem na modernidade. É diferente se compararmos com o Brasil, onde a população indígena é minoritária e está circunscrita em seus territórios”.

Nessas frases, Canclini condensou o fulcro das suas reflexões sobre a construção da modernidade entre nós que, a despeito das diferenças entre países, algo em comum nos aproxima, presente na tensão particular que permeia a experiência histórica moderna na Ibero-América, na qual o novo não substitui o tradicional; contrariamente, a ele se mescla produzindo uma espécie de revivescência transformada do arcaico e uma nova tipificação do moderno. Visto por esse prisma, o pensamento de Canclini acompanha a reflexão dos autores latino-americanos mais expressivos, a exemplo de Octávio Paz, Carlos Fuentes, Beatriz Sarlo, da geração de 1930 no Brasil, representada por Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, de cientistas sociais como Celso Furtado, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, José de Souza Martins e tantos outros.

Se o tratamento da tensão que percorre a constituição das relações sociais modernas nos é familiar e distingue a vida intelectual das nações formadas no bojo da ruptura do nexo colonial, a obra de Canclini formula um lugar conceitual para o problema, com a noção de hibridação. Dito de outro modo, o conceito de hibridação confere uma espécie de dignidade analítica à compreensão dessas realidades movediças, revelando “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (Canclini, 2015, p. XIX. Grifos do autor). Nessa perspectiva, o trato de fenômenos híbridos, que não podem ser tomados na acepção de “fusões sem contradições”, torna-se método, ou seja, erige-se em arcabouço teórico-analítico apropriado à reflexão de tipos históricos que discrepam das experiências dominantes, referências empíricas da literatura clássica. Por essa razão, o travejamento fundamental da reflexão de Canclini confere-lhe a condição de autor vigoroso e original. 

Caberia, ainda, aproximar a construção dos problemas de pesquisa do antropólogo da condição dos intelectuais latino-americanos. Necessariamente ilustrados, mas instados a elucidar os dramas das suas sociedades, a vida intelectual nesses países combina “localismo e cosmopolitismo”, solução criada por Antonio Candido na apreciação do que denominou de lei geral da literatura brasileira. A rigor, mestre Candido ofereceu um lugar para enquadrar o dilema letrado em contextos periféricos, que pode ser elucidado na expressão de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, na frase lapidar sobre o “desterro na própria terra”. O conceito de hibridação é análogo aos anteriores, pois exprime, concomitantemente, uma sorte de deslocamento, a do intelectual moderno, porém imerso em questões discrepantes do padrão. Néstor García Canclini – que foi obrigado a se exilar no México, após o golpe militar de 1976 na Argentina – revela consciência desse trânsito inseguro que cinzela o destino das sociedades latino-americanas; sobretudo inscreve o seu pensamento no rol dos nossos grandes mestres.


Canclini, Néstor García. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª ed., São Paulo, Edusp, 2015.

Texto Institucional 03
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