Fora do jogo?  

A dimensão territorial dos processos de institucionalização, desinstitucionalização e reinstitucionalização cultural na América Latina

Esta pesquisa se debruça sobre a dimensão territorial dos processos de institucionalização, desinstitucionalização e reinstitucionalização dos pontos de cultura e do movimento da cultura viva comunitária no Brasil, Argentina e México. Buscamos elencar critérios para aferir grau de institucionalidade cultural destas iniciativas a nível estatal, público, privado e comunitário. Além disso, pretendemos identificar as formas utilizadas por estes grupos comunitários organizados para interagir com públicos, usuários e beneficiários seja presencial e/ou virtual ao longo dos últimos anos, em especial a partir da recente crise gerada pela pandemia do covid-19. Finalmente, vamos problematizar até que ponto a desinstitucionalização da cultura pública está relacionada com o enfraquecimento do orçamento e o fechamento de programas estatais, com as privatizações de iniciativas públicas, com a “descidadanização” da política partidária e/ou o deslocamento de instituições culturais por aplicativos ou servidores digitais.

Anotações de pesquisa

LIVES, CESTAS BÁSICAS E OS DESAFIOS DA LEI ALDIR BLANC
NOS MUNICÍPIOS DO LITORAL NORTE E AGRESTE BAIANO

Juan Ignacio Brizuela (Agosto 2020)

RESUMO: Buscamos refletir neste relato de experiência sobre os processos de implementação da lei de emergência cultural Aldir Blanc no município de Alagoinhas e região do Litoral Norte e Agreste Baiano, considerando os desafios institucionais, territoriais e de articulação local em meio à pandemia da covid-19.

Aproximadamente cinco milhões de reais serão investidos para 600 mil habitantes dos vinte municípios do território de identidade Litoral Norte e Agreste Baiano, com a efetiva implementação da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. Isso sem considerar os recursos que também poderiam chegar através do governo do Estado da Bahia, que terá que distribuir mais de 100 milhões de reais para todos os territórios[1]. Nesse cenário, os agentes culturais estão mobilizados e com a expectativa de que esta política pública de cultura possa chegar, efetivamente, aos cidadãos trabalhadores e trabalhadoras da cultura que mais precisam.

Isso posto, o presente relato parte de uma experiência de articulação institucional que está sendo realizada em Alagoinhas, cidade de maior porte da microrregião, e busca apresentar uma fotografia do cenário atual, considerando os desafios institucionais, territoriais e de articulação local em meio à pandemia do novo coronavírus.

Em relação à institucionalidade cultural municipal, observamos que sete municípios do território de identidade aderiram ao Sistema Nacional de Cultura: Alagoinhas, cidade com a maior população da região, com aproximadamente 150 mil habitantes; Catu e Inhambupe, localidades que têm entre 20 e 50 mil habitantes; Sátiro Dias, Aramari, Jandaíra e Pedrão, municípios com menos de 20 mil habitantes cada. Dentre eles, apenas Alagoinhas e Sátiro Dias criaram legislação específica sobre o Sistema Municipal de Cultura[2]. Por outro lado, Aramari aparece como o único município com Secretaria exclusiva de Cultura[3].

São três as formas de transferência de recursos disponíveis segundo a lei Aldir Blanc: I. Auxílio emergencial de R$600,00 mensais para quem não tenha benefício do governo federal (a não ser o bolsa família, que pode sim ser acumulado); II. Subsídio para grupos e espaços culturais de 3 a 10 mil reais, com ou sem CNPJ, com dois anos de atuação no território e que estejam paralisados por conta da pandemia e; III. Chamadas públicas, a exemplo dos editais, com mínimo 20% do recurso estimado tanto para municípios como para Estados. Com as informações disponíveis até o momento, ainda ficam dúvidas sobre regulamentação específica, em especial sobre as competências dos governos estaduais e municipais. Contudo, uma das certezas é a importância dos cadastros culturais, tanto locais quando dos entes federados e do próprio governo federal, para homologar quem efetivamente se desempenha como trabalhador e trabalhadora da cultura e dos segmentos criativos.

A mobilização e articulação territorial costumam se configurar com um grande desafio para os setores artísticos e culturais nos municípios. O contexto da pandemia acrescenta mais dificuldades, considerando que as reuniões presenciais e diálogos territoriais são fundamentais no processo de mobilização cultural. Para contornar a situação, os atores culturais têm se articulado, inicialmente, através de grupos de WhatsApp, seja por linguagem (música, dança, etc.), por vínculo institucional (gestores de cultura dos municípios) ou abrangência territorial (localidades do mesmo território de identidade). As transmissões ao vivo (lives) também têm sido cada vez mais utilizadas como ferramentas de articulação.

Mais um desafio registrado nos municípios é o ano eleitoral. Embora isso possa dar maior visibilidade à dimensão cultural durante as campanhas, também sucede que vários servidores e gestores culturais vão ser candidatos, razão pela qual precisam se afastar da pasta ou do organismo de gestão cultural. Assim, quem assume neste contexto terá a responsabilidade de gerir um processo inédito em termos de gestão pública, considerando que não há registro recente de chamadas públicas em nenhum dos vinte municípios da região.

Outro elemento a considerar é o desgaste e frustração muito perceptível na relação do setor artístico com o poder governamental. São sinalizadas dificuldades para realizar inscrições e elaboração de projetos. Quando selecionados, os recursos costumam demorar para serem transferidos, gerando inconvenientes na gestão desse financiamento. Existe também discricionariedade na contratação e até no pagamento antecipado para os distintos grupos artísticos e culturais, como acontece nos festejos do São João. Nesse sentido, a maior parte dos setores artísticos e culturais não estão acostumados a lidar com os gestores municipais, muito menos de forma positiva e estimulante. Isso se manifesta, também, na dificuldade de realizar os cadastros culturais, já que não há estímulo para se registrarem porque “de qualquer forma, só serão beneficiados os amigos do poder”, como é comum ouvir.

Além disso, houve reações e mobilizações por fora dos setores governamentais que incluem distribuição de cestas básicas e participação em drive thru solidários. Empresários culturais locais têm investido em equipamento e novos tipos de espaços culturais, como por exemplo o Espaço das Lives de Alagoinhas, onde músicos e artistas podem participar por um valor acessível e a pauta publicitária vai passando ao longo das apresentações artísticas via streaming. Assim, boa parte dos empreendedores culturais estão reorientando o seu perfil sem muita expectativa real sobre a chegada efetiva desses recursos públicos.

Finalmente, está claro que a maior dificuldade de acessar os mecanismos previstos na lei, além dos desafios mencionados, está no paradoxo de que aqueles trabalhadores rurais e grupos culturais que mais precisam, e que por diversas razões não têm conseguido sequer o auxílio emergencial de R$600,00 do governo federal, são os que apresentam mais dificuldade em exercer uma cidadania cultural digital com acesso às informações, à internet, aos cadastros, enfim, aos direitos culturais nesse novo contexto de pandemia pelo covid-19.


[1] Estimativa de repasse elaborada pela área técnica de cultura da Confederação Nacional dos Municípios – CNM.

[2] Conforme registro no site oficial http://snc.cultura.gov.br/adesao/consultar/municipio Acesso em: 10 jul 2020. 

[3] Informações disponíveis em https://www.aramari.ba.gov.br/site/OrgaosMunicipais Acesso em: 10 jul 2020. 

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